em todo francês mora um linguista
caderno de estrangeirices 2
Gordon Matta-Clark |
ser estrangeiro é constatar todos os dias que aquilo o que
julgava natural ou, ao contrário, totalmente abstrato, a saber – a língua,
torna-se a sua única e, ao mesmo tempo, desesperançosa morada.
posto que morar entre uma língua sem uso e outra que não te
pertence é como morar na rua.
deixar-se tomar por essa experiência e expressão paradoxal - morar na rua - sem nem mesmo ter mais o direito ao sonho do burguês, liberto de sua casta e
casa, sonho que percorreu a literatura da modernidade ao contemporâneo, de
Baudelaire à Beckett, do flanêur ao clochard é como sonhar sem direito ao sono.
olhos vidrados. pesadelo sem noite. sem hora.
hoje, a cada dia que abro a porta do prédio, no qual 'moro',
encontro marie sentada. tenho quase que pedir licença para conseguir entrar
no prédio aonde 'moro'. ontem ficamos tão juntas que decidi olhar profundamente
para as sujeiras e resíduos que ela portava sobre os seus cabelos louros grisalhos. [já disse: afeita às sujeiras do mundo]. pensei nos meus daqui a
alguns anos.
onde estarei?
hoje trocamos um olhar profundo. sem sentido - de nada
adianta querer atribuir ainda algo a essa desgraça. ódio recíproco talvez seja
muito. compaixão também. vivemos todos numa espécie de temperatura sem consolo.
feita dos estados sem começo ou fim. da suspensão do espaço-tempo linear. onde
tudo parece só voltar. só repetir. só retroceder. incluso nossos sonhos. e ideias de futuro. é essa
espécie de sonhar sem dormir. olhos vidrados.
e por que a língua é essa morada sem casa do ser
estrangeiro? morar etimologicamente remete à pausa e a experiência da rua é a
da passagem. para lembrar do seu patrono francês, já que em sua 'terra' pareço
estar – passando e morando, fica aqui ao menos uma homenagem. antes do que vem
a seguir!
e por que a língua é essa morada sem casa do ser
estrangeiro? sei lá, foda-se. é o que em primeira mão gostaria de responder.
mas o francês não me deixa. fazendo questão de me lembrar a cada vírgula,
ausente ou presente, que sou estrangeira.
o sintoma 1 da maladie
de la langue começa assim: “- nossa mas você fala muito bem o francês”.
essa frase se repete no banco. no supermercado. com o crush sans-emploie. com o enfermeiro. ou o técnico em informática. quiçá o florista. ou seja: completamente fora de
todo e qualquer universo onde a língua seja instrumento de reflexão, ou mesmo
de uso mais apurado.
diagnóstico 1 do sintoma 1, ainda promissor seria: em todo
francês mora um linguista. sapiência da língua. língua como problema. língua como
questão.
diagnóstico 2 do sintoma 1: em todo francês mora um
linguista-juiz: língua como prova. como degrau. como passaporte. como fronteira.
como quem entra. como quem nunca vai entrar. como quem deve esperar para
entrar. como quem sai. como quem deve sair.
para quem foi nutrida por uma experiência acadêmica onde
parte de seus grandes professores e renomados intelectuais eram estrangeiros. e
muitos, apesar de viveram há anos no Brasil, continuavam e continuam falando
mal e porcamente o português. num país onde a maior parte, a que mais me
interessa, vem sendo alijada de toda e qualquer sapiência da língua. e ainda
num país onde para uma espécie de formação cult da literatura o que interessa é
falar mal. nas duas acepções. sinto-me radicalmente excluída desse universo
doentio que o francês conserva e alimenta em relação à sua própria língua.
resta-me ainda. ainda. ainda. falar mal! viva!!!! a literatura e a crítica servem para algo!
falar mal é desdizer cotidianamente o 'falso' elogio. que parece num primeiro gesto querer te introduzir, para em
seguida...em seguida...em seguida...veremos. veremos ainda. em seguida. ainda. veremos.
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