Curso Por uma Clínica da Cultura



PUC-Rio, sala 581 Prédio Leme, Terças-feiras das 16 às 19 horas.

Introdução:

Este curso centra-se no desejo de delinear um espaço para o que venho já há alguns anos chamando de clínica da cultura. Sobre o solo erodido ou multifacetado, por vezes até mesmo explodido, dos nossos modelos de representação (política, identitária, nacional, teórico, midiático, etc.) e face à crescente violência dos Estados e entre os povos o caminho imediato é fazer apelo à Razão. No entanto, venho insistindo que nenhum caminho em direção à Razão – no sentido de grandes bases racionais e racionalizáveis, como algo  supremático, capaz de delinear os laços comuns – poderá se fazer, dado o grau elevado de desligamento, desenlace e ódio como paradigmas relacionais do mundo contemporâneo, sem que nos esforcemos para revalorar, elaborar, atravessar e religar diferentemente os nossos circuitos afetivos. Destinando todo esforço outrora exclusivamente crítico sobre a vida, ou não importa sobre qual questão ou objeto, para um esforço clínico da cultura na qual vivemos.

diagnóstico inicial [em prol de uma urgente clínica da cultura] se faz obviamente como efeito da análise de um trajeto [o repensar da minha formação -da psicanálise à literatura - e a construção como intelectual e como mulher] e ao mesmo tempo como reunião de traços que perduram numa trajetória. Nessa trajetória sempre acreditei que a palavra poderia não só dizer, mas ainda dizer francamente (Foucault). Que à teoria caberia não só criar conceitos, mas ainda inventar mundos possíveis (Deleuze-Guattari). Que a literatura inventaria não apenas uma língua, menor ou não, mas uma certa crueza, ou mesmo uma brutalidade do desejo amoroso que entretemos com as palavras (Artaud, Bataille, Barthes, Duras, Grossman). Acabei por entender, sempre de forma provisória e imprevisível que pensar é tecer uma poética aberta, trespassada (Glissant). Onde a crítica se aloja incômoda, tentando esgueirar-se dos grilhões do julgamento e do peso das certezas e sistematizações (Artaud).

Pensar uma clínica da cultura é desdobrar a escuta, a leitura e a inscrição dos corpos no seio do comum, com ênfase numa reflexão sobre as afecções de um tempo, de um contexto, de um horizonte comum (mesmo quando partido).  Mas isso exige que desloquemos as afecções do seu curso puramente moral, imperativo, categórico, e mesmo sentimental. Isso porque as afecções são modos discursivos que na maior parte das vezes incidem sem palavras. Logo como escutá-las nas rasuras do texto? Como expandindo a noção de texto (KIFFER, A. & GARRAMUNHO, F. 2014) circunscrevê-las num debate sobre a escrita? Como recolocar a própria noção de escrita no centro das discussões sobre o corpo e as gestualidades que marcam a insurgência das afecções?

Mas as afecções habitam também o lodo daquilo que não podemos ainda dizer e não somente porque prescindem das palavras e das letras – ou porque as rasuram. Mas porque, nesse caso, elas apontam já não só para a ausência ou a insuficiência da palavra, mas para o desenho do arquipélago dos que nunca falaram (Glissant, 1997). Corpus e Socius (Deleuze e Guattari). Sua intrínseca relação com esse ambiente pré-, para- ou mesmo anti-discursivo (sabemos como a força dos corpos hoje é modo de manifestação anti-establishment dos discursos instituídos), já justificaria sua adjetivação como de borda e transbordante. De fato esse é um traço que percorrerá todos os blocos do curso. Mas ainda há outro, posto que por afecções de borda estou entendendo uma certo giro (no sentido de circunvolução) dos circuitos intensivos que perpassam e delimitam contornos corpóreos e sociais (Corpus e Socius), fazendo com que uma insuficiência possa também se afirmar como potência. Uma impossibilidade como obstinação. Um bloqueio como invenção de nova rota. Ou trilha. Há algo disso que liga as condições das vidas pós-coloniais ao modo específico como essas afecções se enunciam, borram e gestualizam o campo da literatura, das artes e mesmo de um conjunto de discursos, autores e atores que nesse contexto produzem. Algo que viabiliza essas afecções como modo de intervenção e de criação. Afecções de borda são também aparições incipientes. Sutis, mesmo quando brutais. Incipiente é tanto algo ainda não dito, quase-dito, interdito quanto resto, lodo, borra que insiste e borra.

O fato de caracterizar essas afecções a partir de um conjunto de manifestações discursivas ou corpóreas que percorrerão o curso indica que elas insurgem como fenômeno, mas subjazem como algo com que ainda não lidamos. Mas para onde nos dirigimos. Para onde as próprias afecções se nos dirigem, mesmo que não o queiramos ou que não as amemos. A insurgência do ódio como afecção preponderante de tantas manifestações artísticas quanto políticas e performáticas revela exatamente isso.  A brutalidade, a presença massiva da dor (luto, depressão, distopia, suicídio) como elo da vida comum e os deslocamentos subjetivos permanentes a que somos levados a viver hoje (desidentidades profissionais e subjetivas, migrações constantes, flexibilização do trabalho ou escassez de estabilidade empregatícia) prefiguram também alguns modos das afecções que exigem rever seus assentos, paisagens e pedagogias anteriores. Suas antinomias, e mesmo a sua força de união ou de desagregação não operam como antes. Isso está na arte. No modo como escrevemos. Como se inscreve hoje publicamente um certo lugar da poesia como corpo-voz política. E também nas insurreições e nas manifestações políticas-estéticas. Nos novos modos discursivos de muitas das reivindicações das ditas minorias. E mesmo nas correntes que se nos arrastam para as velhas capturas totalitárias. As do medo e as do extermínio. As afecções de borda serão vistas aqui como que banhadas disso tudo, fruto disso, mas querem ser a isso também um antídoto ou, um veneno - contra o medo e o terror.



Objetivo do Curso:
O curso tem como objetivo geral compilar, analisar e formular a partir de análises teóricas uma noção de clínica da cultura, a ser esboçada no seio das contribuições artísticas e críticas acerca dos estudos do corpo e de escritas centradas no pathos contemporâneo, tendo como foco a análise do que entende-se ser um campo de manifestação das afecções de borda, com ênfase para a afecção do ódio.


Programa: 
O programa do curso centra-se sobre dois eixos. Num deles interessa observar os deslocamentos que a noção de crítica-clínica opera em torno da noção de crítica, dos anos sessenta ao contemporâneo, formulando-se desse modo como uma zona singular e ao mesmo tempo de contaminação entre o regime artístico, político e subjetivo. Noutro interessa aprofundar a reflexão acerca das relações entre as escritas das afecções e as manifestações artísticas e culturais e as implicações que tais reflexões operam sobre o campo crítico hoje, envolto não apenas com as prerrogativas estéticas, mas também aquelas de ordem subjetiva, política e afetiva. Daí o relevo do elemento clínico do pensamento crítico. Entendendo que tais processos crítico-clínico são também processos de criação e de subjetivação política.

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