deixa arder

deixa arder

direção Marcela Levy e Lucía Russo
performance Tamires Costa



deixa arder
direção Marcela Levy e Lucía Russo
performance Tamires Costa

quando não encontramos mais as palavras para dizer – descrevemos. ou inventamos. poesia.
era uma caixa preta. teto. paredes. e chão. as cadeiras eram brancas. de plástico. para arder as bundas. talvez. inflamável. o som perfurava alto. talvez. não. no início era o corpo. o corpo negro. entre moça e mulher. entre menina e menino. talvez. não. uma certeza. um corpo negro dançava à exaustão. a língua dançava. não é que a língua falava. ou a face. a boca. os dentes. os olhos revirados estivessem todos ali para expressar. algo. para nós. no seu próprio rosto. um mundo interior. ou não. um mundo para nós. o seu exterior. ou para exteriorizar. o seu. o nosso. melhor. o nosso sentimento. e emoção. não. cada parte do corpo dançava. à exaustão. [dançava o quê?]
espera. riam do seu rosto. revirado. em órbita. seriam caretas? minha filha me olhava. seria mesmo para rir? qual o limite entre o riso e o? atroz. pare. era impossível não rir. deixa arder. de nervoso. de desgraça. talvez. eu também ri. e ao mesmo tempo comecei a sentir. sentir não. a sensação não sente. nem se deixa narrar. não iria aguentar. como continuar. a rir? talvez. trancada naquela sala toda preta. com aquele corpo negro dançando à exaustão. [dançando o quê?]. diante da plateia quase toda branca. quase toda. porque talvez naquele dia estivessem os pais dela. os únicos dois corpos negros. ao meu lado. obrigada. e você dançando. [dançava o quê?]. a plateia. quase toda branca. que ria. a plateia. branca. que ria. comecei a sentir algo na barriga. logo já estava estrangulando o meu pescoço. entre a barriga e o pescoço. um centro nodal. talvegue. a angústia é uma mão que te torce por dentro. deveria rir para a minha filha. afinal. ela foi comigo. ela quer ser bailarina. sempre é um tempo que mora num mundo quase todo branco. os desejos. os sonhos. os corpos. a plateia. os risos. a angústia.
a dança. talvez. mas o corpo impele uma dança. que o recolhe. e empilha corpos. entre um e outro. talvez. em alguns momentos. ocorre uma pilhagem de muitos outros corpos. expropria-se devolvendo-nos. na nossa cara branca. sim. como pilhamos. e rimos. e pilhamos. os corpos negros.
Josephine Baker. era um lagarto sorrindo. os seus olhos reviravam para manter o nosso estrabismo atávico. e nos fazer rir. porque ver. afinal. é atroz. melhor o riso. nervoso. da história da pilhagem dos corpos negros. pelas mãos brancas. o roubo branco. o mal branco. mas e a minha filha? ela é boa. e branca. como posso ser parte desse mal? e tentar ainda agora vestir. espera. Blackface. sim era uma boca branca. sobre um corpo negro. pilhagem. já foi um corpo branco impedindo que o negro dançasse. ainda seria preciso traçar -na curva histórico-política do racismo- as suas afecções. qual relação entre a inveja e o racismo? porque nós nunca dançaremos assim. [dançava o quê?]. a exaustão. a resistência implacável. o ânimo da vida. o fogo. a dança anterior à dança. o que nos faz viver. a força de sobreviver. quando se sobra.  
talvez.
em um momento apenas a dança interrompe-se. [dançava o quê?]. para que ela fale. 
talvez. ela tenta falar. uma série de palavras engolidas. os gestos guturais da língua no corpo estrangulado. pela máscara que os brancos colocaram nas escravas negras. retorcendo toda a arcada dentária. prendendo a língua. todas as línguas que pilhamos. já não consigo escrever. o dia está amanhecendo. foi divertido. ardemos no fogo onde queimamos os corpos. e pilhamos. os negros. e rimos. talvez. uma linguagem anterior à língua. porque roubamos-lhes o direito à fala. 
por Ana Kiffer. dezembro. natal. branco? de 2017. no brasil. país [de] branco? o que dançamos?


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