quero a saúde do Lula. a dele. e do que ele chamou da ideia dele. muito longe da grécia. da prisão. e de curitiba. e perto da necessidade de sabermos quem matou a marielle.

foto de Christian Braga


o desejo de fazer apenas e de imediato uma análise puramente literária ou filosófica do discurso de Lula, como se o discurso fosse algo que estivesse lá enquanto nós estamos aqui, o ódio lá enquanto nós aqui, sim claro, somos só amor... para mim nada mais é do que o retrato da nossa incapacidade e morosidade. ou pode ser pior: do nosso cinismo. racismo. e insuficiência em fazer corpos políticos outros.

o mínimo seria entender que enquanto uns fazem análise, outros atravessam agora mesmo -na experiência da fome, da exclusão, da prisão, da pobreza, da morte, do racismo tout court- a configuração de um corpo outro. sim é perigoso um corpo outro... não porque é feio. fede ou é preto. fala errado. não tem dedo. nós ainda não entendemos. não fomos até o fundo do poço. é muito grande a nossa cegueira. 

demandam empatia. repito: é insuficiente. demandam escuta. repito incansavelmente: este conceito é branco, forjado para proteger quem ouve. e jamais aquele que toma a palavra. pedir para que deixemos nossos privilégios. repito: é ingênuo. ou cínico.

Lula discursou à beira de. esse discurso à beira de não é dele. é exatamente constitutivo do estado aonde parece que agora começamos a sentir, ou começam alguns a sentir, ou nem ainda isso. estado para onde ele agora, de forma impiedosa e injusta retorna: racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”, (...) a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. (Mbembe, A. Necropolítica)

à beira de quer dizer - à beira do mundo. à beira da vida. à beira da saúde. à beira da cidade. à beira do corpo. à beira de si mesmo...e aqui começa a complicar. porque à beira de si mesmo quer dizer que nós estamos envolvidos. implicados. acoplados. e que, portanto, não é só o Estado quem mata. biopoder. como qualquer poder. se exerce em todas as instâncias onde há vida. matar, desse modo, não é só uma atividade do Estado e pode ser também uma atividade da análise literária. que mata o outro. ou mata justo o que poderia ser a beira entre eu e ele. em proveito da 'análise'. do 'discurso'. assim apartado de sua 'temível materialidade'...

não. não é metáfora...

sim Lula é simpático, e pagou por isso um preço. convidou muita gente acreditando que eles viveriam com ele naquela beira de onde vinha. ou que deixariam a beira virar mar...com isso reduziu crivos. mas também alargou bordas. desde os seus companheiros de palanque até mesmo a multidão. 

mas percebam como de fato 'à beira de' tornou-se uma experiência que andamos descartando muito. julgando. expulsando de forma cada vez mais acintosa. se ela reaparece será assim domesticada em fantasias perversas de prostíbulos classe A. inócuas fantasias. está aí o crescimento do conservadorismo. ele é análogo à nossa recusa de viver 'à beira de'... ele destina aos velhos espaços escusos o desejo. moralizando-o em excesso. perverte-o desse mesmo excesso. excesso que coaduna sucesso com normalidade. e cada vez mais. nas nossas cabeças assim juntos. nas nossas expectativas. e nos nossos modos de vida comum. o que faz com que a gente precise apartar. matar. expulsar. expurgar tudo o que não faz esse par sucesso=normalidade. e à beira de não é mesmo um estado de "normalidade"...

e no entanto à beira de seria, para mim, o único modo de conseguirmos abrir mão do nosso estado de pseudo e frágil segurança. nem consigo dizer de privilégio. de normalidade. ou de sucesso - que querem nos convencer de que é apenas algo inerente ao 'mecanismo'. ou que, ao contrário, controlamos quando controlamos a nossa imagem na cabeça dos outros (parece delirante né? mas hoje é normal...). e privilégios, sinceramente, só abriremos mão se um dia a Lei sancionar. ou se alguém tomar.

mas se por ora entendêssemos que a segurança não é apenas um estado que vale para alguns de nós...
e nada melhor do que agora para entendermos isso. afinal o estado de exceção agiganta-se e ele só faz isso aumentando o controle sobre a vida das pessoas, leia-se: matando. expulsando. apartando... e logo, como nas doenças sem cura, sentimos agora, como que por um instante, que a morte não está tão longe...

enfim. quem matou Marielle é um indicador da nossa saúde comum. assim como o estado de Lula na cadeia. ou à beira de...

estamos desprotegidos não porque perdemos um pai/político. estamos vulneráveis não apenas porque a corja ficou. estamos assim porque somos incapazes de ir ali viver à beira de. e engrossar o caldo. com verdade. com um pedaço da nossa carne. cada um com a sua. ou com um osso exposto. sem análises de bisturi. e cinismos de falsos amigos.

falta percebermos que ou mudamos o nosso modo de apreender. de aprender. de ensinar. de sentir. de viver o mundo. ou ele nos engole.


eu quero ver a saúde de Luís Ignácio Lula da Silva. eu quero viver. diferente. onde à beira de é potência. devir. tomada de poder. dizer verdadeiro. lugar de fala. ou materialidade aguda desinstalando os nossos assentos discursivos. escolham vocês o nome. eu quero ver a saúde de Lula. eu quero viver. eu quero saber quem matou Marielle.

Comentários

  1. À beira de.... ter um treco... emocionante. Texto. Obrigada.

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  2. Obrigada, Ana. Através deste texto [que me veio através do blog do joão camillo, que me veio por conta de uma busca por um pdf do agamben...e além do agamben (que sorte a minha, a nossa) você também tava lá] cheguei até aqui. E vou voltar sempre. Eu compartilho do desejo pela saúde de Luiz, de viver para saber quem matou Marielle. Um abraço.

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