nunca vivi apenas sobre chronos



Não compreendo. Apenas
Tento
Somar meu corpo
A teu corpo negro
(...)
Não compreendo. Apenas
Tento
(Suor, subida, cascalho
Seca)
Somar teu corpo
A meu pensamento.
H. Hilst


tempo 1:
2017 ano de quedas. rupturas. armadilhas. ardil e covas. uma nova competição diferente daquela que enfrentava os seus desafios de cara tomou um outro rosto. um rosto que mina –não a pretensa e falaciosa solidariedade inventada por nós brancos – mas mina a própria possibilidade do combate-entre. tudo fazendo-se sorrateiramente por detrás. alguns gozam. a roda parece andar. e porque a roda anda o desejo de fechamento nelas também. os guetos. e a guetização como modo de vida. utopia fraca de um entre amigos? fato político? mímesis de um congresso entre iguais?
e a amizade como sopro de uma abertura? de uma fenda. de um desconhecido. respeito...por que  respeitaríamos? se endeusamos a iconoclastia como religião e confundimos liberdade com abuso? inventar conceitos. seria? ainda? ou zonas que falem uma língua que desconhecemos. e aprender a traduzir. difícil...
revalorar a noção de respeito nesse mundinho branco pode significar também não querermos mais dirigir tudo. saber tudo. guiar tudo. controlar o imaginário. e julgar. incessantemente julgar. mas nem por isso confundir o não julgamento com o vale tudo. alternativo é um conceito branco. apontando o dedo na nossa cara e dizendo: até isso vocês não conseguiram!
existirá talvez uma linha transversal do respeito? não mais a hierarquia vertical. tampouco a falsa horizontalidade do “entre amigos”. isso exigiria sair do paradigma. do sintagma. da estrutura...o que certamente exige rever novas políticas do trabalho...mas também subjetivamente a radicalização de outros modos que não esses que até agora nos mantiveram no domínio disso -da cultura, da política. e de nós. como não pedirmos por outra tutela e ainda assim conseguirmos sair do domínio de nós mesmos?
mas eis que é também em meio a isso que...revela-se inevitavelmente esse mundo da avidez sem base. da fluidez sem chão. revalorar é também poder voltar ao chão. depois da queda. serve apenas para aqueles que caíram. e sobreviveram.
*
tempo outro:
amar o combate-entre. negar o falacioso convite ao combate-contra. essa zona é uma borda tênue. uma casca da concha depois de muitos anos no mar. já está aqui. uma membrana fina. porém resistente. as mulheres que não se intimidaram mais. aos homens que a isso verdadeiramente respeitaram, poucos. a cultura negra que apesar de nós não se furta em vir ao nosso socorro. ainda buscando criar um desenho outro. uma linha outra. um contorno diferente.
um corpo que não foi escrito canta. o canto dela. as vozes desse canto. imaterial. atingindo em cheio a nossa carne. as ruas de pedra cheias de uma gente toda. gente que por toda uma vida não vimos ali. ou quando vimos: violência e medo.
aquilo já não era política de gravata. de gabinete. de negócios. aquilo era o capital humano ocupando com respeito o que lhe foi retirado. crianças e velhos. gente da rua. já não diríamos com nosso dicionário sociológico ultrapassado que aquilo ali era o movimento negro organizado. tampouco aqueles branquelos de esquerda fumando maconha e sonhando um mundo melhor. cheio de livros bíblias. sem razão ou destino. eu nem sei dizer o que era aquilo ali. porque o que não conhecemos ainda não tem conceito. mas inventa atmosferas. eu traduzo atmosferas. quando sou atingida em cheio. de amor. de força. como se uma revolta tivesse não se organizado. mas metamorficamente tivesse ocupado a célula voz. a célula cabelo. a célula sorriso. um jeito de andar.
um corpo não escrito é atingido.
por anos viveu cuidando-se em espaços que a maioria de nós desconhece. os pés no chão não renderam-se ao ferro em brasa que o queimou. a boca acorrentada com um couro de bicho brabo. grades na boca. grades na boca não apagaram o canto. o canto dela.
o que vimos esse ano de 2017 foi sim o nosso horror em carne. mas também – para aqueles que caíram e sobreviveram – a maior oportunidade que já tivemos. refazer o Brasil só será possível quando a cultura branca for efetivamente transformada. atingida. pela cultura negra. em muitas e em diferentes instâncias. não significa apenas dar visibilidade. ou respeitar. trata-se aqui de uma transformação do nosso próprio lugar. isso começa e termina. quase sempre. pela célula corpo.


OBS.: as atmosferas dizem respeito a diferentes vivências que tive em 2017. a maior parte delas decido que permaneçam privadas. mas faço menção à atmosfera da rua quando do lançamento do livro de Djamila Ribeiro "O que é lugar de fala", na Glória, Rio de Janeiro.

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