livro todo mar [6]

a corda

para Daniel
in memoriam
jean-babtiste debret


não quero mais a rima
este cheiro podre do poema
nem os ares dos bares
aonde discutem isso
vou sair da escola
deixar de novo viver a violência
verbal
aquele descomunal
perfurando
os fracassos da menina
cada gota do olho
vertida em mares
de naufrágios
lentos
quero de novo o vento
arrastando as minhas letras
o indócil da minha vida
enfim contido
noutro corpo
verbal
literal
esta língua lambendo
afoita a página
a solidão da tarde
o ruído
sombrio que invade a casa
vazia
de nada viver
ou morrer.
vou chorar o pranto da tua partida
enforcada
pela corda que usou
desaparecendo por fim
das visões que me entregou
um dia
vou abrir o nosso caderno
das notas feiticeiras
para estancar a desgraça
que a tua morte
não levou
ainda agora
devorando-me tudo o que tinha
esquecido
tanto tempo para isso
suicidar
o amor
o girassol
o amarelo das horas
amassadas
das fotos
antigas.
o nebuloso dos nossos tempos
em teu pescoço
retorna
o púrpura
supurando as minhas feridas
tudo o que estava trancado.
naquele armário infantil.
do quarto sem volta.
e já não tenho sequer como dizer
à minha mãe
que você morreu
e ela também.
e que acolher cada resto
que deixam
boiando no verso
de tudo.
já não farei.
pois deixei a escola.
a hora.
não farei mais.
de dor. ou revolta. ou amor.
não farei essa curva do tempo gasto
da hora do poema
ao findar do dia.
não farei mais a contagem
das vidas perdidas
e do horror vendido.
não farei mais o dever de dizer
às mães que sobreviveram.
das mortes dos filhos.
pois essa corda
que você decidiu sozinho amarrar
em teu pescoço
está aqui
agora na minha garganta
estremecendo todo o vocal
o nome.
a vogal.
e o final
de tudo.



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