fulminato [6]

escreve-se quando se tem que portar uma vida



há alguns anos num artigo que escrevi sobre fome e revolução voltei ao fim de um tempo. ao fim também da vida de alguns autores. para entender ou pensar um conjunto de questões que me parece de novo hoje importarem...

aliás já dizia ali que me interessava ouvir o que dizem as pessoas em seus tempos finais. duro, sim. mas importante. cada vez temos menos ferramentas subjetivas e políticas pra lidar com a morte. [velhice, doença ou fim]. das pessoas. de um tempo. de algo. incluso das ideias.

não que perpetuemos o já acabado. as vezes fazemos mais é patinar num certo limbo. levando o que já não é aos confins de uma existência parda ou, pior, autoritária.

desconfio sempre. também já disse talvez na primeira coluna que escrevi para a Revista Pessoa. já disse que desconfio. isso quando não temo - essas ideias que sobrevivem num mundo muito excludente. sobretudo que não manuseiam com alguma lida de alguma vida. de um - até certo ponto - espaço possibilitador de vida. vida orgânica ou não. vida política ou subjetiva. comum ou solitária. mas ainda assim vida.

daí a importância de tomarmos sempre os espaços da morte. ou mortificantes. tornando-os também espaços de vida. mais difícil. eu sei.

pois veja que nesse tal artigo fui ouvir o que diziam / faziam Glauber Rocha e Josué de Castro antes de morrerem. exilados pensadores da fome...

Josué escrevia o único romance da sua vida - Homens e Caranguejos. Glauber, em Sintra, dizia que também escrevia seu grande romance. sobre o sebastinanismo... e que buscava por fim um especificamente literário ao mesmo tempo em que morria de ‘fome’.

vou voltar hoje a pensar esse especificamente. vou leva-lo um pouco mais longe. incluso porque algo hoje quer fazer viver o que é propriamente literatura. ou o que é ou não poesia. entre outros. numa necessidade de demarcação do específico que, me parece, vai na direção oposta ao que as visões de Glauber e Josué faziam. e elas me interessam mais...menos excludentes. mais próximas ao desejo de incluir vida[s].

tampouco eram visões do inespecífico. justamente num consistente passo ao lado dessa seríssima dicotomia brasileira. seríssima porque aqui tanto o pensamento da mistura quanto o da pureza renderam o nosso pior. mistura e/ou pureza figuras extremas, borras ou espectros que se presentificam tanto num certo específico quanto num certo inespecífico.

essas visões do Glauber e do Josué poderiam servir de contraponto a isso. e serem ouvidas. até porque há algo nesses relatos do fim que aproximam as visões das vidências. das fabulações...[ notem que voltamos hoje ao fenômeno da fome ignorando o pensamento, as visões da fome no Brasil...].

ou seja ao desejo e manuseio com uma vida que pulula. ainda sem forma. sobre a qual injetamos ânimo. utopia. sopro. élan. e algo mais. o que faria também da nossa audição. se a elas ouvimos. um certo exorbitar dos próprios horizontes acústicos do tempo presente. todo horizonte acústico é um formatador. até certo ponto, nessa perspectiva, anestesiador. precisamos ouvir os barulhos da nossa surdez...furos da capa acústica...em maior ou menor grau.

qual o ‘especificamente literário’? seria a pergunta.
1) o do fluxo e o da proliferação, logo tudo o que chegar dizendo que "eles" não entendem o que é literatura ou poesia não está nessa visão... tanto Josué quanto Glauber viveram o específico como um fluxo necessário que prolifera-se e que prolifera vida[s] no seio da experiência da morte/fome/exilio etc.;
2) habitado por seu próprio exterior, ou seja: se você delimita ou tem a visão de um acontecimento específico você corta um plano. todo plano traz coisas e deixa outras. cria uma zona. imediatamente essa sua visão concretizada no plano será habitada pelo exterior dele. logo aqui o específico traz consigo tudo o que lhe escapa. tudo o que não é ele. nele mesmo. nada há nele que seja puro. tampouco que seja mistura. há sempre o seu próprio exterior.
3) o específico aponta para um modo do funcionamento do desejo. no caso escrever. não filmar. nem dar aulas. nem pensar tratados geopolíticos acerca da fome. mais difícil. o que há de específico no desejo de escrita? tenho falado muito disso. em função da minha própria vivência. tenho escrito sobre isso nessa aventura que vem sendo pra mim as colunas da Pessoa. vou falar disso na Abralic. esta semana. mas para o que importa e o que cabe aqui diria apenas: em algum momento, por alguma razão, somos tomados pela 'visão' de portar -e não apenas de viver- a vida. aí se escreve.

escreve-se quando se tem que portar uma vida.

[notem digo uma. não necessariamente a minha vida. mesmo que eventualmente também].
esse é o especificamente literário. independente do gênero. [que a meu ver é uma discussão menos importante].

portar uma vida é uma das visões do fim. de qualquer fim.

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