Da perda de si às reivindicações identitárias de hoje - por uma critica-clínica da cultura




Esse texto em forma de grandes notas foi a base e o roteiro da minha palestra no âmbito das atividades do grupo Questões de Subjectividade: Filosofia e Literatura, do CultureLab, na quarta sessão do Seminário Livre sobre "Figuras da Subjectividade na Filosofia e na Literatura", que ocorreu no dia 31 de Janeiro, na Universidade Nova de Lisboa – Instituto de Filosofia.

Título:
Da perda de si às reivindicações identitárias de hoje - por uma critica-clínica da cultura

Resumo:
Falarei de questões que partem – em grande escopo- das tensões entre as contribuições filosóficas, estéticas e políticas oriundas da segunda metade do século XX e sua recolocação atual. Que interroga frontalmente algumas das perspectivas anteriores face à emergência de novas reivindicações políticas e subjetivas – das minorias face aos devires minoritários, do pessoal face ao grande impessoal do literário, dos modos de vida face ao acontecimento cruel da Vida, tudo isso pensado no cruzamento entre realizações artísticas e atuações políticas. Dos cadernos ao modo barraca de viver, em proveito de uma nova geopolítica dos afetos.

Ana Kiffer
Professora Associada da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, escritora, colunista da Revista Pessoa, curadora da Exposição ‘Cadernos do Corpo’ (CCJF, 2016), uma das fundadoras da Revista DR, pesquisadora da obra do francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos uma investigação dos diversos modos de relação entre os corpos e a escrita. Autora dos livros A punhalada [poesia], (7Letras, 2016, coleção Megamini), Antonin Artaud (EDUERJ, 2016), A Perda de Si (org.) (Rocco, 2017) e das coletâneas Sobre o Corpo (7Letras, 2016), Expansões Contemporâneas – literatura e outras formas (UFMG, 2014), Experiência e Arte Contemporânea (Ed. Circuito, 2013), entre outros artigos e ensaios.


Roteiro da Fala:
Meus sinceros agradecimentos ao Prof. Joao Constancio, a Profa. Maria Joao, a amiga Anabela Mota Ribeiro, a presença ilustre e que muito me comove do grande intelectual e escritor Eduardo Lourenço e a todo o público, meu muito obrigada.

Premissa: Defino, por direito adquirido, que minha fala hoje não se qualifica como uma tese, podendo navegar sem a estrutura narrativa, e abrir-se ao fragmentário das hipóteses ainda sobre o campo, e aos processos de pensamento ainda em gestação. Apenas uma hipótese será central (a da necessidade de olharmos, refletirmos e criarmos uma maior espessura das bordas), e um conjunto grande de caminhos e bifurcações ou camadas se tecerão em torno dela. Me dei o direito, em se tratando de um laboratório, de não adotar o compromisso com fechamentos e com os estados conclusivos, quero partilhar processos, pontuar e indicar direções.
Também estou buscando colocar-me na posição de uma professora já de meia idade, que usufrui dessa maturidade para algo – e que apesar de ser mulher – expõe-se ao risco de pensar alforriada, quer dizer um tanto por conta própria, levantando as minhas ideias – sempre em aliança, diferença e diálogo, mas já não mais em submissão – ou seja: modelo de citação passiva, conceitos sempre já formulados por outrem, hipóteses apenas circunscritas aos textos analisados, no caso da literatura, quando muito a algum autor estudado. O mar aqui abriu-se a essas distâncias mais convulsivas. Quiçá efeito desse Portugal!

A estrutura da fala: divide-se em 4 momentos distintos
1) Crítica-Clinica da Cultura: busco, partindo de Artaud, rever uma noção crítica e clínica da cultura qsue teve sua primeira e grande plataforma através da esquizo-análise proposta pela filosofia de Deleuze e Guattari
2) Por uma maior espessura das bordas: num segundo momento crio uma inflexão na proposta clínica e crítica para lhes falar dessa hipótese central – que perpassará todas as hipóteses aqui apresentadas. trata-se de uma reflexão sobre as bordas e as linhas e um convite para criarmos uma relação mais espessa e consistente com os espaços das bordas sejam elas políticas, urbanas, subjetivas ou estéticas
3) Cadernos e Modos Barraca de viver: no terceiro e quarto momento falarei brevemente da relação dos cadernos – da escrita de cadernos com a questão das bordas, assim como desse objeto em construção, de uma pesquisa atual e feita ela mesma de diferentes camadas – incluso de um caderno etno-poético– que intitulo modos barraca de viver – apresentarei aqui apenas a  camada da pesquisa que coaduna criticamente com a hipótese das bordas, como desenvolverei ao longo desse percurso hoje com vocês
A estrutura deste texto: fiz um conjunto de notas – com isso vocês vão sentir – imagino eu – aqui e ali algumas lacunas, interrupções e suspensões.

Por que e como interessa ainda hoje Antonin Artaud?
- penso Artaud como um autor da borda, nisso reside para mim a sua potência contemporânea;

- talvez a sua força de cólera tenha feito dele um autor menos ouvido ou acolhido do que outros, Blanchot falava que era difícil ler Artaud pelo excesso de sofrimento e dor, eu diria que o mais difícil de suportar em Artaud é a afecção da raiva – o ódio. Afeto, no entanto, que trabalhamos muito mal no seio da nossa sociedade judaico-cristã e que hoje vem determinando muitos dos nossos mapas - tanto políticos quanto subjetivos;

- a cólera foi tomada como menos séria estética e subjetivamente, menos séria incluso do que o humor e o riso, talvez por sua força anti-cristã, essencialmente blasfematória

- mas seria no mínimo brutal desconsiderarmos hoje a força insurgente e revindicatória que atravessa a blasfêmia e a raiva

- foi tal força que esteve na base do pensamento de Artaud

- permitindo-lhe tanto reinventar um corpo através da escrita quanto abandonar o corpo fruto da criação e da procriação – à saber: tanto o estrato judaico-cristão, quanto o edípico – daí, entre outras, a sua necessidade de inventar um CsO

- uma das minhas hipóteses acerca de Artaud versa sobre a ideia de uma perda de si - como construção de um lugar discursivo já em tensão e em contato entre o identitário e o exterior indomável, entre o pessoal e o impessoal no que tange à escrita literária ou poética

– e é precisamente daqui que busco pensar a força atual de Artaud

– situo também o fato de que a minha leitura se dá sobre um plano geopolítico – porque ouvi-lo hoje no Brasil e não na França parece mais possível? a potência atual de Artaud localiza-se na reivindicação politico-afetiva para se refazer o corpo a partir das experiências da fome. Da pobreza. Da exclusão. Trata-se do corpo de cada um e de todos nós. Estamos nesse mesmo ponto hoje: racismo. Machismo. Pactos gregários. Retorno da fome. Desigualdade atávica e imensa. E extremo conservadorismo. Mas como ele dizia a volta que fizemos foi em espiral. Mas entendam também: subjetivar/atualizar um autor, como venho tentando fazer com Antonin, não se confunde com mimetizá-lo. Assim como localizá-lo nesse nosso canto do mundo e não na Europa parece apenas fazer justiça a face virtual do seu próprio desejo.

- com Artaud pauto o que venho chamando de Critica-Clinica em relação explícita com Deleuze-Guattari, mas que hoje assume uma tonalidade inevitavelmente e incontornavelmente ativista –

Critica–Clinica da Cultura
- uma crítica-clínica da e na cultura está interessada em deslocar igualmente os paradigmas do juízo que fundamentam a experiência crítica no ocidente, assim como os paradigmas médicos (interpessoais, hierárquicos, individuais) que vieram consolidando a clínica. um dos efeitos desse deslocamento impõe retirar todo caráter salvacionista tanto da crítica, quanto da clínica. daí também seu compromisso cruel. atado ao fato incontornável. a uma pedagogia que se tece na urgência e na sobrevivência, logo dura, mas não depreciativa. algo que a precariedade das classes subalternas sempre nos ensinaram – nas bordas externas do seu caráter cristão e branco –que uma certa crueldade é uma afecção inevitável da aprendizagem.

- esse gesto crítico-clínico impõe também alargar. democratizar. ampliar. os modos das experiências consideradas artísticas na medida em que a crítica assume a sua vertente inventiva e subjetivante e a clinica assume a arte ou, melhor, os processos criativos ou inventivos, como lugar privilegiado de subjetivação no mundo atual -  o que requer dessacralizar as experiências artísticas. aspecto esse que a elite intelectual e artística resiste de maneira contumaz.

- é desse prisma critico-clinico e ativista que algumas das próprias noções oriundas dos autores que nos formaram exigem hoje serem revistas: a sintomatologia assim como os modos de experiência política deslocaram-se na mesma medida em que nós, países colonizados, vimos finalmente reivindicando a singularidade dessa história e exigindo-nos repensar as nossas matrizes...

– nota-se que os discursos desses autores (homens, brancos e europeus - em sua maioria) eram eles mesmos gerados no seio da ultima grande reviravolta social dos sessenta e setenta

- sabemos que hoje vivemos nós uma outra grande, imensa reviravolta. feita de diferentes feições – onde deve-se também nela incluir o desmonte de alguns paradigmas forjados ou atualizados há 50 anos atrás, no seio do pensamento e da prática de alguns desses autores - leia-se: o paradigma do ser de esquerda, a noção de trabalho e de classe, as organizações partidárias, assim como as formas estéticas ou os modos de contorno e de transito que ali entre elas se forjava, assim como a matriz branca e ocidental, e a singularidade das experiências dos países colononizados.

- talvez por isso mesmo venha repetindo desde o golpe jurídico-midíatico no Brasil – mas mesmo antes, já como efeito das jornadas de junho de 2013 que: precisamos repensar – seria mais correto dizer que precisamos extrair e atualizar – as potências da provocação deixada por Deleuze em seu texto "maio de 68 não aconteceu".

- sua tese é a de que maio de 68 não aconteceu porque ‘os franceses não souberam operar as reconversões subjetivas necessárias ao acontecimento’.

- extraio essa chamada do texto para introduzir algumas das questões que vou propor hoje. trata-se, pois, de operar as reconversões subjetivas necessárias ao acontecimento sob pena do acontecimento nunca poder ter de fato ‘acontecido’. o uso dessa negativa no passado para um evento já passado (nunca poder ter de fato acontecido) é a provocação necessária para entendermos que o acontecimento não se rende a nenhum estrato cronológico. e que por isso algo pode ter se passado na história mas não ter se efetuado na ... essa efetuação é o que Deleuze situa ou chama de reconversão subjetiva.

- note que desse modo o fato histórico perde a sua supremacia cronológica, mas ele perde também a sua iluminação de palco, do acontecimento enquanto algo que se passa lá enquanto nós estamos aqui. algo distante, social, coletivo – tudo o que vimos entendendo como acontecimento histórico, político, estrutural, ou mesmo econômico, como sinônimos de indiferentes, longínquos ou a-subjetivos. reflitam sobre os efeitos disso!

- tenho a sensação de que a reconversão subjetiva do acontecimento cria uma consistência singular que nos aproxima da experiência dessas zonas indeterminadas. límbicas. de passagem, mas também em suspensão – tanto no plano estético quanto político. o que estou chamando aqui de zonas de borda.

Por uma maior espessura das bordas:
- essas zonas estão presentes em muitas, diria mesmo na maior parte dos modos reivindicatórios que trafegam entre o político, o artístico e o subjetivo hoje. são modos, como percebo, que vagueiam constantemente entre a necessidade de demarcação do pessoal, fixando-o de forma muitas vezes rígida – e as transições, tensões, deslocamentos e flexibilizações identitárias exigidas pelo mundo contemporâneo.

- mas são também modos crescentes de existências migratórias e precárias, fruto das transformações geopolíticas, das mudanças no contorno do nacional e dos contornos entre centros e periferias, nas mudanças do que entendíamos ser trabalho e no que hoje é trabalho,

- enfim, notem que já com esses dois planos acima indicamos um modo de configuração subjetiva e política da bordas, e tanto em um quanto em outro veremos como novos modos de existência serão convocados, o que venho chamando de modos barraca de viver participaria desses novos modos de existência, pedindo ou exigindo passagem.

- mas antes disso: se tomo como ramificação de base a experiência da literatura ou a da criação escriturária e artística diria que essas existências de borda apontam, entre outras, para um inesgotável conflito (tantas vezes em disputa subjetiva, intersubjetiva e transubjetiva) entre o pessoal e o impessoal.

- seria preciso entender que esse pessoal que ecoa e emerge ai não se funde, não se confunde e não se determina pela exagerada exposição do indivíduo ao triunfo do poder e aos seus inesgotáveis ganhos narcísicos –
[abro uma nota: está aí uma referência de discussão que pautou a minha formação no início dos noventa: discutir e ler, lamentando, incansavelmente, sobre o triunfo do indivíduo, do individualismo, sobre a cultura do narcisismo ou os declínios do público. vejam que a matriz era ali a da perda da utopia socialista e a da crítica da ascensão do capital. o indivíduo foi visto e rastreado majoritariamente de forma muito severa. vivíamos numa verdadeira culpa de sermos quem queríamos realmente ser. já não havia o preceito de liberação dos desejos em comum. em público. e ao contrário criticava-se, nos ambientes de esquerda, toda assunção do indivíduo. que ali quase fundia-se à ideia de um ególotra, apaixonado por si, promotor exclusivo dos seus desejos. em contraposição clara a toda ideia de coletivo e de comunidade.
nós mulheres, se mostrávamos algo mais de nós éramos rapidamente taxadas de exibicionistas. cultura política. cultura sexista. cultura moral. cultura religiosa. cultura psicanalítica. nesse momento estavam todas essas culturas de mãos dadas – contra o indivíduo e obvio que de modo sempre mais brutal e severo contra os modos de individuação das mulheres. sua sexualidade. seu desejo de trepar. mas e sobretudo seu desejo inesgotável de falar. e os seus modos de falar.
não por acaso vivo hoje, tanto no convívio com minhas alunas, quanto diante de muitas poetas jovens, um conjunto importante de espantos. espanto-me, muitas vezes com alegria, entendam, quando vejo determinadas jovens falarem nas redes sociais de suas pegações, de suas trepadas, enfim dessa sexualidade à luz do dia. e me considero ainda jovem. mesmo madura. entendam que essa mutação é muito recente. estou falando de uma década. estou falando mais precisamente de meados dos anos 2000 para cá. e da aceleração, no Brasil, dessas transformações. no substrato disso, ou na beira disso, nos anos noventa, eu passava a minha década de estudo. na graduação. no mestrado. no doutorado. e nada disso estava ali.]

- penso que no Brasil de hoje – no que tange às novas reivindicações discursivas – mulheres e negros – e a assunção do tão temido “lugar de fala” esse pessoal não se restringe mais ao triunfo do indivíduo e do individualismo, fruto da leitura dos oitenta/noventa – e por isso também algumas matrizes teóricas vem impedindo que muitos críticos leiam o contemporâneo. Isso porque o “lugar de fala” tampouco se deixa resumir ao anônimo, ao coletivo e ao social como corpos orgânicos que figuravam nas análises das estruturas e das conjunturas de uma sociedade, vistos em sua maioria pelos pensamentos considerados de esquerda.

- por um lado esse nosso pessoal de hoje está sim absolutamente marcado pelas inesgotáveis exclusões sociais, raciais, sexistas. pelas nossas impossibilidades de termos –noutro momento histórico- verticalizado as reconversões subjetivas necessárias ao desmonte (ao menos de sua compreensão mais partilhada) desse quadro racista, sexista, altamente desigual socialmente, o que faz com que a nossa sociedade seja ainda hoje colonial e extremamente injusta.

- mas por outro lado esse pessoal é migratório, móvel. não filiando-se apenas às castas, classes ou contornos fixos de onde podem até terem se originado.

- quer dizer: ele é também um pessoal diaspórico. que se perde, se reinventa e contamina-se de diferentes tradições em um mesmo grupo. de gênero transversal. múltiplo, mesmo quando definido. abrindo-se. ou desejando-se aberto. exatamente nisso reside a força – e também a maior parte dos conflitos [onde há força há conflito] das nossas reivindicações pessoais.

- seria isso que hoje nos desafia, a meu ver. esse algo que faz com que hoje o pessoal se inscreva numa disjunção inclusiva com o impessoal, com o que dele foge ou escapa. com o que dele não se restringe às nomenclaturas existentes, e mesmo quando parte de sua existência radical –por exemplo: a mulher – precisa se nomear para se "identificar" em luta, em combate. mas ora vejam que a mulher está justo no seio desse tecido discursivo, político e subjetivo, se [re]inventando, e finalmente podendo se reinventar publicamente. no Brasil, afirmo, com muita verdade que há um grande medo da elite (quando não uma proibição e um veto movido à força, violência e assassinato) da tomada em mãos dos nossos próprios discursos. e, nesse caso, penso na reinvenção pública das mulheres negras no Brasil de hoje: há um medo geral que claramente diz: nós brancos nunca consideramos a necessidade de calar a nossa boca sobre o que entendemos e detemos ser a verdade, e sobretudo a verdade alheia.

- quer dizer: falo aqui de uma escuta do pessoal imerso em muitos e diversos regimes ou camadas de um comum que submergiu, que não foi RECONVERTIDO, para voltar ao termo, que foi aniquilado, violentado, agredido, impedido. o comum que submergiu e já sabemos [ufa!] é o dos negros, o dos pobres e os das mulheres no Brasil.

- mas obvio que enquanto essa submersão rolava a galera nadava. está na hora de parar de achar ou tratar negro, pobre e mulher como categorias monolíticas ou históricas. ali paradas no nosso tempo. aonde teríamos querido deixá-los. (e esse "nadava" é o que garante hoje uma resistência implacável e sem retorno a essas lutas: mesmo que ainda queiram dizer de seus "sectarismos identitários" de seus retrocessos - essa cegueira conceitual que não entende porque interessa não ver que nenhuma dessas identidades se reconfigura hoje em estado puro ou essencial - mas em estado de combate. elas reconfiguram-se - incluso - em modo diaspórico de resistência)

- quero voltar à questão da reconversão para assinalar um outro ponto – esse termo reconversão remonta aos estudos psiquiátricos do século XIX, mais especificamente aos estudos sobre as neuroses histéricas.

- sabemos que Deleuze-Guattari usaram muito pouco a matriz neurótica para suas formulações críticas e clínicas – tendo ido navegar nos quadros de borda – esquizos ou mesmo na psicose tout court

- no entanto, e não por acaso, esse é o termo utilizado por Deleuze para referir-se a essa dobra face ao acontecimento.

- gostaria que ouvissem nesse termo sua necessária exigência – qual seja: toda reconversão subjetiva opera-se sobre os corpos – não há plano discursivo aqui – seja ele ideológico ou teórico – que possa promover, considerar ou agir sem que o plano corpóreo esteja ativado. incluído. diria mesmo como ator principal dessa operação.

- por isso, os processos de reconversão subjetiva encontram-se hoje entre nós – decerto e à principio imersos em zonas e voltagens micropolíticas e impessoais- mas marcados, como se marca na carne algo - por essas novas ´pessoalidades´ que reinstauram novas existências, novos modos territoriais, novos usos dos corpos, novas cartografias físicas que atravessam a cidade, as feiras, as instituições em direção às praças, ao canto de uma comunidade

- são corpos reinventados ou ressemantizados – do turbante africano às barracas coletivas nas ocupações estudantis que podem ser vistos como corpos agentes dessas cenas de reconversão subjetiva. que é feita de um novo coletivo, porque operando a partir de corpos individuais e histórias pessoais.

- notem como aqui há uma torção atual que faz com que o pessoal difira de um só eu. só para os mesmos. só para mim. e crie uma curiosa e nova zona de indeterminação com o impessoal. é para ela que estou tentando olhar. rabiscar. configurar. deixar-me atravessar.

- e é a partir disso que buscarei pontuar como a questão das bordas configura a pesquisa com cadernos e o modos barraca de viver—

- isso porque entendo essa maior espessura das bordas como uma tarefa crucial de reconversão subjetiva diante do nosso tempo.

- tornar e tomar a borda como espaço vivível e já não mais como olhar para o outro – seja ele altruísta, de compaixão ou neofascista é necessário!

- aliás ousaria dizer que essa é uma das crises do ser de esquerda hoje – diferente dos neofascistas a nova esquerda não encontra mais motivações corpóreas – reconversões subjetivas que passam pelo plano físico e afetivo – para tomar ou querer a borda como espaço vivível – isso está talvez nas mãos e nas experiências dos muito jovens ou dos negros – ou seja: vozes desconsideradas quando trata-se de pensar e traçar novas Políticas (com P maiúsculo), vozes que já estão nas bordas...

- notem que essa maior espessura das bordas significa olhar para as nossas próprias vidas e interrogar quais seriam as razões hoje que nos poderiam fazer desejar, digo DESEJAR - deixando-se inscrever corporalmente em nós - as bordas?

- entendam que desejar os atributos do mitificado centro – ou dentro – a cidade, as luzes, a fama, o celular, o dinheiro têm recrutado inúmeros jovens para filosofias neofascistas. já nós, esgotamos nosso olhar de compaixão. já provamos da falência do humanismo. mas ainda não experimentamos caminhos menos intelectivos que pudessem talvez nos deixar afetar pelas bordas. ou quando sim eles são em sua maioria negativos ou despotencializados: a depressão, o desemprego, o vício, etc.

- as bordas devem, sob esse aspecto, serem vistas - porque de fato o são - em sua acoplagem político-subjetiva, não adianta não desejá-las pois elas já estão inscritas em vocês

- a questão é mais tomá-las e traçar junto com elas: quais são as suas bordas? essa é a questão de hoje. muito mais do que qual o seu CsO e como ele pode desestratificar e desterritorializar o teu desejo de forma disruptiva... creio que isso acabou rendendo mitificação da loucura ou da sexualidade que fez com que só o capital ganhasse com elas - dos remédios aos clubes SM o que se nota é que as utopias dos setenta em torno das trangressões oriundas dos estados de loucura ou de sexualidade foram sendo esvaziadas de sua força, e a vida comum, o como as pessoas sobrevivem e sofrem foram também por essa mitificação dos estados limite sendo negligenciadas, logo inviabilizadas, logo exterminadas

- de fato hoje trata-se de entender como você se inscreve ou como em você inscrevem-se tais ou tais bordas, esse é o exercício crítico-clínico necessário a uma potência de encontro não ingênuo, ou apenas hierárquico (não-encontro), tampouco somente cínico ou interesseiro entre as diferenças e os desiguais - uma empatia de fato, cruel, em diferença, e com respeito!

- as bordas como espaço vivível e não motivo de sideração crítica -como já foi tradicionalmente tratado: vale aqui lembrar a velha máxima do carnavalesco Joãozinho Trinta que disse “quem gosta de pobre é intelectual”- significa, entre outras, que a palavra e o poder devem rodar – que a tarefa intelectual e/ou política não pode mais estar majoritariamente nas mãos daqueles que nunca foram sequer tocados pelas bordas: entendam aqui o acoplamento fundo -clínico e não só crítico- entre as questões/reivindicações minoritárias e a reconversão subjetiva de toda uma sociedade...é toda uma sociedade que depende dessas reivindicações minoritárias. ou seja: pobres racistas, o que acontecerão com vocês? pobres machistas como viverão? amando apenas os homens? tornar-se-ão pedófilos? ou conseguirão sobreviver sem mulheres? como nós hoje, alijadas do mundo de vocês?

- esse novo olhar aqui e ali para as bordas começa também notando a pouca atenção que demos às linhas que demarcam as separações. por exemplo a linha entre limpo e sujo, louco e normal, razão e desrazão e não o fenômeno da desrazão, ou da limpeza, etc.

- por exemplo: o que vive NA linha que separa o limpo do sujo? SE eu disser a rua com isso já indico um esvaziamento brutal do espaço público. Se eu disser o íntimo ou o pessoal ou o desejo significa que esvazio outro domínio – qual seja: os das “perversões” passíveis de serem partilhadas no comum, alojando-as cada vez mais num regime policial, judiciário ou religioso, por exemplo.

 - um outro exemplo: qual a linha que demarca ou separa a luta da mulher? É a linha que a separa do homem? Da casa? Da maternidade? Do trabalho? Quais outras lutas encontro no corte dessas linhas? Maternidade/ casa/ trabalho/ divórcio / orfandade/ desamparo... Em cada uma delas entender onde está a separação/junção. Ouvir o recado das linhas...para começar a criar a espessura das bordas.
... não por acaso caímos de novo e tão fácil num ou noutro canto. é difícil a cada situação estratégica traçar as linhas – encontrar as bordas...

- de fato, os autores que atravessaram essas linhas, e que sobreviveram depois disso, deixaram todos eles testemunhos, ou insurgências de algo que vive ali numa zona indistinta. entre. para o quê não conseguimos dar este ou aquele nome ainda nesse momento.

- a última obra de Artaud é exemplar nesse caso, no que tange à experiência da loucura, do trauma, mas também da lucidez, da retomada da palavra, a remontagem de uma poética, etc. Foi assim e por isso que tudo começou aqui com ele...

- eu diria que, hoje, as posições extremadas testemunham também isso: um estreitamento das linhas. por isso também precisamos dar nova espessura às bordas. apalpá-las. torná-las vivíveis. mais espessas.

- é sob esse aspecto que interessou-me a pesquisa com a escrita de Cadernos

Os Cadernos :

- venho pensando os cadernos como um meio, para deslocá-lo da visão que o entende apenas como suporte. Isso me permite também pensar a sua materialidade desatada de sua forma. Incluso de um certo arcaísmo ou saudosismo da forma: o manuscrito, o caderno artesanal. O preciosismo das capas e revestimentos. O que para a parte de minha pesquisa que se debruça sobre cadernos atuais é importante. Isso porque no meu celular tenho um caderno. Alguns artistas fazem do instagram um caderno. Enfim. Para o que hoje nos interessa valeria dizer que a força que a noção de meio me oferece reside na possibilidade que o meio produz de singularizar o que ali acontece. Os meios são ativos. São transformados assim como transformam a matéria que ali se processa. haveria mesmo como que uma relação processual entre o meio e a matéria. Um algo vivo dos dois. Interferindo-se. Ferindo-se. Permitindo zonas de indeterminação – ou bordas espessas e vivíveis: que como venho aqui frisando são absolutamente fundamentais para vivermos o nosso tempo

- mas no caso dos cadernos essas bordas não atingem apenas as linhas que separam e ligam a arte às subjetividades ou o literário à vida, como por tanto tempo se pensou ser a singularidade dos diários

– no caso dos cadernos essa borda atinge em cheio numa espécie de democratização dos processos de criação, isso porque:
1) todo mundo tem caderno,
2) abrir os seus cadernos é um modo de compartilhar esses processos precários de criação – o que retira do artista a aura única e romântica,
3) há algo nessa borda que diz menos respeito à intimidade e mais à vulnerabilidade, à fragilidade – frágil é a nossa construção de um lugar no mundo;
4) trata-se de universo em algo desauratizado e distópico o dos cadernos, que envolve no entanto uma certa estética da existência, como queria Foucault,
5) notem que criatividade é o que nos é demandado como modo de existência no mundo contemporâneo:
- as empresas, os novos trabalhos exigem isso como condição singular e si ne qua non:
- parto aqui da análise feita por Tatiana Roque a partir de uma matéria que saiu recentemente na Folha de São Paulo a propósito da grande discussão sobre trabalho no Fórum Mundial Social na Suíça: “Nesse cenário de extinção grande de trabalhos que exigem pouca qualificação e criação de um número menor que exige muita, a tendência é de aumento da desigualdade, alerta a OIT. A boa notícia é que fica claro que os trabalhos para humanos terão que envolver qualidades humanas, como criatividade", afirma José Manuel Salazar-Xirinachs, diretor regional da OIT para a América Latina e Caribe. "Isso soa muito legal, mas a questão é: quantos trabalhos para pessoas criativas serão gerados?".

- eu pergunto: de que criatividade trata-se aqui e qual a nossa contribuição, função e mesmo papel nessas mudanças – como críticos e artistas?

- decerto seria começar a não resistir tanto a poder debater sobre os processos criativos e sobretudo sobre a democratização deles, mas nós intelectuais e artistas ainda resistimos muito a isso

- somos muito mais territorialistas do que imaginamos. E pensamos isso muitas vezes, mesmo quando não declaramos, a moda antiga – como algo senão aurático ao menos feito por e para poucos

- a discussão com cadernos envolve de forma central abrirmos entre nós críticos e artistas questões relativas aos processos de criação (desde os meios materiais até suas consagrações mediatizadas) e incluso das criações conceituais, daí a mudança nas “formas tese” hoje e a necessária revisão dos modos em separação radical – sem borda - do funcionamento crítico e artístico na universidade

- deixo para a discussão questões mais específicas sobre as quais queiram falar sobre os cadernos

- isso para tentarmos ainda tocar nessa segunda dobra da questão da borda, que venho chamando de:

Modos barraca de viver:

- começo a pensar isso a partir do acontecimento das ocupações estudantis no Brasil – trata-se ali de novos modos móveis de organização politico-subjetiva nas cidades, são barracas que exigem em seu modo de vida –exposto a uma maior precariedade-  uma relação mais central com o próprio corpo (no que tange à higiene, à sexualidade, aos corpos em contato, entre outros) – e desse modo os territórios antes apenas institucionais, públicos, apartados política e subjetivamente das pessoas passam a ser usados, e trata-se de antemão de um uso corpóreo, que pode ele mesmo passar a reconverter a relação subjetiva do estudante ou ocupante com aquele lugar ocupado

- a partir desse momento constato que a noção de heterotopia de Foucault já não dava conta dessas formas móveis – ainda pressupondo uma separação mais estável entre centro e borda

– hoje nota-se uma infiltração ou uma germinação das bordas nos centros (não é o mesmo que dizer que só existe centro!!!!)

-  as ocupações figuraram também isso– tanto a dos migrantes nas grandes urbes europeias quanto a dos estudantes nas escolas, universidades ou lugares de elite – como a praia do Leblon no “ocupa cabral”

- os modos barraca partem, além desse cenário contemporâneo, da releitura da reconversão subjetiva do acontecimento (DG) e dos territórios usados propostos pelo geógrafo brasileiro Milton Santos.

- entendo que ambas as noções  voltadas para essas vidas que incrementam hoje as espessuras das bordas nos aproximariam desses modos de vida em barraca...

- noto com essa pesquisa que o “modos barraca de viver” não se esgota na concretude da barraca montada em territórios ocupados. identifico nesse "modos" dois grandes eixos da cultura contemporânea: num deles o traço que foi colocando subjetividades antes mais estratificadas pelas forças conservadoras numa posição mais potente a ponto de se reconfigurarem (reivindicações minoritárias exigindo novos modos de vida em pé de igualdade ao então majoritário modo homem, branco e ocidental). por exemplo: saindo da fixidez do que deveria ser a mulher em acoplamento com a casa e a maternidade, coube à mulher contemporânea reivindicar uma vida mais errante, antes destinada apenas aos homens

- noutro eixo deve-se no entanto notar que todo gesto de desestratificação identitária é liberador mas também é precarizador de modos de vida. sair do estrato é viver em terra móvel. sob esse aspecto “modos barraca, de viver” deve buscar pensar/ativar novas espessuras de borda, sob pena de as linhas ali estreitando-se as vidas em terra móvel extinguirem-se

- sua importância e o nosso desejo de positivar isso parece assim crucial: espaços subjetivos e políticos onde possamos existir de maneira, digamos, “dependurados”, seja afetiva, laboral e/ou economicamente. de fato já existimos, porém mal. existências a ponto de serem abortadas. as mulheres que não estão no padrão casa/família/matrimônio sabem do que falo...há um custo financeiro, laboral e SUBJETIVO ainda hoje nessa condição. imaginem as situações de afastamento maior dos centros? sempre que falar de centro entendam nessa noção um chamado político e subjetivo.

- como exemplo da questão da mulher trago duas manifestações artísticas para refletirmos a passagem da casa como lócus da vida da mulher e a conquista de sua inserção profissional, ainda assim precária, colocando-a muitas vezes em situação de nomadismo (risco, modos barraca, desamparo, solidão exacerbada, entre outros), representada pela artista através de um trailer de camping. No primeiro caso a obra Femme-Maison de Louise Bourgeois e no segundo a obra/intervenção/reflexão sobre o nomadismo intitulada A-Z escape Vehicule Owned and customized by Bob Shiffler da artista contemporânea Andrea Zittel.





- no caso do Brasil constato que toda essa reflexão sobre os modos barraca de viver não tem como dar-se exclusivamente sobre o plano artístico, mas tampouco esgota-se no plano puramente político. Isso porque essa precariedade, fragilidade e perenidade das casas e das vidas é algo muito constitutivo da própria cultura brasileira

- não por acaso fomos um país doador de todo um pensamento da fome para o mundo no século XX– ver Josué de Castro e Glauber Rocha

- eu diria que hoje interessaria menos buscar destacar essa pregnância e força do precário (a tal cultura da fome) e mais um olhar demorado para esses modos de vida “em barraca”, em situação permanente de “borda”– já há muito existentes

– essas barracas em permanência e em vulnerabilidade não estão apenas nas favelas e comunidades – elas também povoam por exemplo toda a costa do Brasil – são detentoras de saberes e sabores – instauram um modo econômico, um modo de vida, de culinária, de música, de costumes dos quais participam diferentes classes sociais – justo aí – nessa borda! falar disso não significa negligenciar a precariedade, mas valorizar, olhar, entender como o centro participa disso, criar modos de que essa potência seja reconhecida, legalizada, usufruída e não apenas "aproveitada" por nós...



- por essa razão afirmo que no caso do Brasil os modos barraca de viver marcam, criam e inventam diferentes maneiras de dar espessura às bordas. já consolidando esse nosso modo de existência antes de sua “aparição” como gesto político nas recentes ocupações, sejam elas as ocupações estudantis ou as ocupações públicas das praças ou bairros pelos migrantes oriundos das bordas do ‘território’ europeu (ver Marielle Mace).

- no entanto, e com isso termino, mesmo aqui, essas barracas juntas, em contraste, união e diferença, convidam a uma nova aproximação desse paroxismo da vida – como a que flagrei em Paris há uma semana atrás no bairro popular e negro em que ali vivia – Barbés Rochechouart – um morador de rua com sua barraca montada tinha, no entanto, e ainda, algum dinheiro no banco, mesmo que vivesse ali, na calçada, ‘descalço’ sob os pés do capital.

Comentários

  1. quando penso território/terra/território fico de frente com uma suposta materialidade que expõe e esconde formas de dominação tão sutis. como é difícil/cruel pensar limites, fronteiras e bordas dominados por conceitos quantitativos. Corpo e território. vc trouxe Milton Santos… muito p pensar. território p Milton Santos é gente. é fluxo. não é "coisa" que se domina sem que gentes sejam subjugadas sem resistência. Muito o que pensar. Valeu ana.

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    1. exatamente: gente, modos de vida!!!! reivindicação de EXISTÊNCIAS

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