fulminato [10]

qual vítima?

retrato de Sonia Mossé feito por Antonin Artaud 1946

no dia 1 de abril de 2017 escrevi parte deste texto. o atual cenário parece pior agora do que o que ali já entrevia-se. por isso decidi retomá-lo. para reativar e ainda e sempre tentar provocar novas zonas de diálogo.

as zonas de diálogo foram ao longo de toda minha vida a mão que me ajudou. e mesmo quando achei que nada mais teria jeito. aprendi com meu pai. veja, este senhor cheio de contradições políticas e subjetivas algumas bastante peculiares, outras marcadamente geracionais, e sim extremamente machista. mas foi com ele que fui tocada pelo que até hoje me sustenta de pé, pelo que de fato põe a comida na minha mesa e na da minha filha, qual seja: o valor da palavra.

o valor da palavra – esse algo que muitas vezes como um pêndulo vai tocando diferentes afecções – às vezes uma certa utopia. outras uma quase-crença. também um alimento de sustentação narcísica. necessário. porque precisamos conseguir amar a nós mesmos sem no entanto ficarmos por nós embevecidos [e esse caminho, acreditem, é mais difícil para as mulheres!]. mas também um motor de indignação transformadora. e sobretudo de multiplicação do amor. porque a palavra endereçada só se faz porque amamos. ou queremos continuar amando. o outro. o diferente. o não-saber. o desconhecido. o incompreensível. e mesmo o indizível. porque amamos. apesar.

e é por isso que volto. mesmo que me desagrade. me fira. e doa. porque sei que tenho muitas outras coisas a dizer. mas sei também que só o farei se puder dizer. e nessa escalada. de silenciamento e desrespeito. o risco é que de novo muitas de nós não queiramos entrar nisso. e calemos. eu conheço na pele e na carne o que é ser calada. e silenciada. tudo isso pode ser muito sútil. sem polícia. e sem armas.

mas volto. apesar. volto às minhas interrogações sobre a extrema resistência dos homens do meu meio face às reivindicações das mulheres. homens em sua maioria brancos e intelectualizados. e que parecem estar resistindo de forma tão ofensiva ao movimento e às reivindicações, por vezes necessariamente duras, das lutas minoritárias.

isso me parece muito grave.

essa reação ofensiva se tece de modos distintos. por vezes o silêncio que fazem representa em momentos como o nosso – não apenas índice de suas covardias e compromissos históricos – mas também uma estratégia de silenciamento. e deveria ser por nós e por eles considerados. porque afinal estou certa de que muitos não querem nos silenciar. e deveriam estar aqui agora se pronunciando, ao nosso lado...dentro dos limites que conseguirmos. mas não vivemos apenas o silêncio. nem apenas a retaliação. a exclusão.

agora a ofensiva da palavra também está crescendo.

e isso no meio intelectual é bastante complexo.

porque sabemos que tal como o advogado ou o médico estão protegidos pelo código de sigilo com o cliente/paciente, o intelectual – sobretudo calcados como fomos pela figura de uma ideia crítica distanciada e isenta de subjetividade – está protegido pelo código da objetividade ou da neutralidade ou da cientificidade que validará em maior ou menor grau o seu discurso. o que pode atribuir ao seu discurso o caráter impedidor, ácido, e bloqueador do maior e mais importante fluxo que o Brasil vive desde a saída da ditadura militar – o das lutas das minorias atuais. o efeito disso pode ser desastroso.

o desmonte. o apoio e a formação de seus pequenos grupos e feudos. e aqui tenho infelizmente que dizer de novo – grupos que muitas vezes se tecem e se sustém com o apoio de muitas mulheres. esse tipo de guetização que se acentua entre nós. e nesse momento muitas vezes justificada como resposta à guetização das lutas minoritárias é ainda um equívoco maior. alimentado e potencializado pelo incremento cavalar da competição. acentuada pela crise econômica. mas também pela perda dos territórios utópicos da esquerda. assim como pelo efeito da queda dos grandes discursos explicativos que parecem subjetivamente se presentificar através de uma precarização das nossas capacidades de dar sentido e logo de nos responsabilizarmos por nossas experiências. o famoso; “eu não sei porque fiz isso” levado ad infinitum. tudo isso sobre o solo que desemboca em uníssono num grande coro de que tudo o que queremos é ter. e o próprio conhecimento torna-se uma conquista e um território a ser conquistado. e logo um algo reducionista. tudo isso ainda valorado – no seio de uma sociedade extremamente desigual – pela ideia normopática de sucesso.

as lutas minoritárias só podem existir porque pessoas, coletivos, sentimentos de pertencimento, indignação e opressões comuns se unem. isso é histórico. não é um momento ou uma fase. e deve ser encarado por todos nós como nossa tarefa. talvez o único modo que a nossa sociedade consiga abordar os seus conflitos. aqui e até hoje camuflados, escondidos ou reprimidos pelas classes dirigentes.

uma luta minoritária não é ou não deve se confundir com um gueto. e se isso acontecer significa que o fluxo de suas reivindicações está sendo encurralado. e que todos nós devemos ir ali participar para buscar desbloquear o estreitamento. os estreitamentos são sempre decorrentes de práticas. e toda prática pressupõe modos de organização dos corpos. formas de instituí-los. e consequentemente linhas de força. e logo exercício de poder.

mas e esses feudos masculinos dos intelectuais e suas escolhidas? que operam desde a estrutura de produção de conhecimento na universidade. e chegam às editoras. determinando conteúdos que serão absorvidos como verdade. sem contar nas colunas dos grandes jornais. o que de fato representam? a que opressão histórica e comum respondem?

por tudo isso. agora. decidi assumir o risco. mais esse. a minha vida tem sido assim. e sim sinto-me muito excluída. e sim sofri inúmeros assédios. e sim fui violentada. e sim sinto-me ainda hoje muito desrespeitada tanto pelos professores quanto (e isso é o mais novo fenômeno) pelos alunos e alunas que já chegam ali legitimados por esses temporários mas ainda assim cíclicos e atávicos guetos...

quero tentar pensar. e levantar hipóteses. que não se resumam ao medo da perda dos privilégios. tampouco ao medo do escândalo. de terem que rever. ou ver os seus nomes envolvidos nas denúncias de assédio. mesmo que tudo isso possa ser doído. e que como ato isolado não justifique as transformações necessárias.

decerto na universidade esse tipo de “lista” poderia ser desastroso. porque há uma aliança intrínseca entre a  forma de organização do poder do professor com a sua sedução – a sedução da palavra. que tenta trazer o outro – “tenta” o outro - para o seu modo de ver e de pensar. mas isso não significa que todos os homens adentrem ou sobrevivam nessa estrutura sem se distanciar. sem coadunar inteiramente. ou aderir por completo. do mesmo modo que nem todas as alunas se acoplam a isso de forma pacífica. ou submissa. mas a notar: essa estrutura, mesmo quando não determina o modo de ação do homem intelectual nunca foi por ele questionada. verbalizada. ou denunciada. de novo o silêncio. e entendam: o silêncio num espaço aonde o único remédio de que dispomos é a palavra...

mas vamos lá. volto ao texto de abril 2017:

por que os homens ficam tão ofendidos quando são chamados aqui e ali a ter que ver os seus atos de machismo, desrespeito, arrogância e poder sobre as mulheres? quando não se ofendem duas são as saídas clássicas: o cinismo, por exemplo na frase ‘confundem-me com o meu personagem’. ‘mas você estava totalmente seduzida pelas minhas aulas’, ‘ah por favor você bem que gostou?’ ou a vitimação.

é uma vitimação diferente da das mulheres e das crianças, algo nela guarda uma tática antiga de guerra – a melhor defesa é sempre o ataque – e esboça, portanto, que, mesmo enquanto vítima, o homem encontra-se numa posição privilegiada de poder, por exemplo na frase tão banal que diz ‘estou sendo desrespeitado publicamente, não vou tolerar isso’, ‘você é muito agressiva, sempre foi, tudo resulta daí’.

normalmente essa vitimação não dará conta ou assumirá a quantidade de vezes em que a mesma pessoa terá desrespeitado pública e privadamente uma mulher. no entanto, a preocupação com o público, com o vir a público, que vem demonstrando os homens de hoje precisa ser melhor compreendida por nós. é pouco ver aí apenas uma questão de imagem.

estamos passando por uma mutação no regime de produção inconsciente em nossa sociedade. o inconsciente não é um conjunto de imagens recalcadas de papai-mamãe e de seus substitutos ao longo da vida. mas uma usina que produz subjetivações sociais. está na hora de perguntar: como se produz agora, socialmente, os investimentos, camadas inconscientes e as relações inconscientes?

no momento atual o nosso dizer, o nosso discurso, a nossa dor, a fala, os nossos textos, as marcas nos nossos corpos – múltiplos e singulares, os golpes que nos deram, os bloqueios, os cortes, as rasteiras, o desprezo por nós, as nossas histórias, os estupros, as mortes, os nossos assassinatos estão escancarando como essa produção inconsciente do “masculino” em nossa sociedade ficou guardada, encerrada, lacrada “em particular”. nas salinhas, quartinhos, casas...becos sem saída!

a mutação hoje diz respeito à linha de produção do inconsciente, que sofre novas demarcações sociais exigindo novas subjetivações. algumas mulheres e homens não aguentarão ver nem transpor essas novas zonas. e isso também merece atenção e cuidado.  ver é ter que mudar as suas próprias produções e relações de subjetivação no nível inconsciente, retraçando novos limiares intensivos entre o consciente e o inconsciente. e entre o temido público. e o sorrateiro privado.

desculpem o textão... mas eu mesma observo o quanto parece paradoxal dizer que uma produção do inconsciente masculino ficou 'em particular' já que o homem vem sendo visto como aquele que foi autorizado ao público: ao espaço, ao domínio e ao desejo públicos. mas justo aí no paradoxo, ou por conta disso, esquecemos de notar que a produção desejante no nível inconsciente do masculino é muito muito, muito camuflada, escondida, etc.

já passou da hora de perguntar 'o que quer uma mulher'? está na hora, se vemos o inconsciente como usina social, de perguntar o que e como desejam os homens. para incluso nos liberarmos de uma posição de subalternidade em relação a isso!!!!!!


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