fulminato [5]

o resto define um rosto

no home movie chantal akerman



nada parece desperdiçar tanto a nossa potência hoje
nesse mundo mundano
do que os falsos amores.
esse amor entre vaidades. exclusivamente posto ali. entre vaidades.

se estivéssemos noutro tempo diria exclusivamente o amor excessivo à lisonja.
guiando os nossos passos. em direção ao número de likes.
questionamos o lattes mas quantificamos tudo. e pior - o amor.

a lisonja é também uma das máscaras do machismo no meio intelectual.
elogiar a mulher enquanto mulher na universidade é uma forma constante de apagar a sua potencia de fala. de argumentação. a sua potência intelectual.
se num primeiro momento parece incentivar. se nela ficamos arrastamo-nos como presa desse olhar que lisonjeia.

a questão crucial no entanto e nesse caso seria: como conseguimos falar ‘despidas’ desse lugar previamente concebido. que coloca as armadilhas da sedução retórica (até certo ponto intrínseca ao ato intelectivo) como sendo no caso das mulheres um atributo essencial – diria mesmo físico- ao seu pensar/falar/escrever.

que bonito isso Ana!!!!!

explico-me: a mulher está ainda e inevitavelmente presa às amarras desse olhar que a objetifica. então como conseguiremos transitar entre a potencia, a assunção dos nossos desejos e corpos sem que os mesmos sejam tratados exclusivamente como elementos do lisonjeio?

e consequentemente como  diminuidores da nossa potencia de pensamento ou criação? como colocar o corpo a beleza as afecções a sensibilidade a fragilidade a intuição o sonho os desejos como ferramentas do conhecimento equiparadas à racionalidade à razoabilidade à lucidez ao equilíbrio etc?

porque se masculinizar e se des-erotizar eu conheço.

também conheço um serpenteio sonso de quem usufrui da posição jovial de combatente e rebelde. aquele[a] que ainda não é o[a] ‘mestre’. os que não assumem que ensinam. estudantes eternos. algumas mulheres...sim.
e muitos homens até hoje mesmo quando ‘mestres’ podem manter-se aí. o que é o mais incrível, nesse caso.

aquele que ainda não precisa se comprometer com o dizer-francamente para que o outro o reconheça e a partir dali se reconheça a si mesmo. ingrata e desafiadora posição.

serve de ponto de desterritorialização e logo de subjetivação para o outro ali ‘iniciante’.
mas ao mesmo tempo deve manter-se territorializado para que o outro exista ou possa seguir per si.
sim até aí nesse dizer-francamente há uma falácia de posições...não há um encontro entre pares.

mas isso ainda complica-se mais. porque na universidade ao menos entre os colegas homens e mulheres deveria haver um encontro entre pares.
pois bem [salvo exceções] não há.

a mulher professora- mesmo quando ganha algumas rugas- continua sendo vista por seus pares como a eterna estudante que deu certo. paga por isso um dízimo. quando não sente-se uma impostora.

óbvio o meu caso.

mas hoje também a lisonja autorizada entre os homens está muito complicada. o que a principio foi vendido como uma liberação ou assunção pública do ‘lado sensível ou feminino’ não acarretou ao fim e ao cabo em nenhuma mudança profunda da posição machista.

sendo assim entre eles a lisonja acaba levando duas vantagens em relação a nós.

numa eles permitem elogiarem-se infinitamente. e nós que tivemos que nos ‘brutalizar’ para sermos respeitadas preferimos competir do que elogiarmos umas as outras. afinal...

noutra -mais difícil- como a posição coletiva social e a máquina machista não mudou - nem parou de funcionar- o lisonjeio entre eles continua sendo uma forma de legitimação. logo de exclusão. qualificando pactos extremamente gregários. dos quais continuamos alijadas. ou comparecemos como musas inspiradoras.

se não conseguirmos conversar. e fazer com que nos ouçam e entendam ficará ainda pior. porque obviamente acrescentará a esse fechamento um outro elemento: “nos reunimos entre nós porque entre elas não passamos mais, elas estão nos excluindo...”. posição próxima ao momento de recusa do racismo que está em todxs nós brancxs. somos nós ainda por cima as vítimas...afinal não somos racistas!

na minha área de atuação (essa mesma aonde sinto-me, como uma infinidade de mulheres subalternizadas, uma impostora)–

bem nessa bela área indefinida que gira em torno dos espasmos da criação- é muito mais fácil ver isso operando como um dispositivo perverso do contato entre as pessoas.

como a criação depende realmente da musculatura afetiva (entre outras obvio). fizemos algo assim:

dissipamos a força do afeto (que é sempre mais difusa. mais caótica. mais intensiva e menos extensiva ou descritiva).
depois acoplamos o afeto a uma afetividade de salão. cheia de nomes próprios. rostos e likes.
e toda a experiência do que poderia ser sair de ‘si mesmo’ provocado pelo ‘outro’ (essa terminologia é insuficiente e equivocada mas ainda não temos outra) se esvaiu.
seja numa escrita a dois. seja num processo conjunto qualquer.
tornando-se, ao fim e ao cabo, apenas mais um fio para manter os seus entre si. para exercer o poder de incensar tudo aquilo que você sabe que não questionará o seu lugar. a sua retórica. a sua lisonja.
ou seja. o contrário do que a força afetiva. abridora de uma nova linha de subjetivação indicaria ou levaria. e que nos acometeria verdadeiramente com a necessidade de construirmos novas terminologias.
e sobretudo diferentes estares.

por hora nesse âmbito só vejo mesmo é o retorno e a homeostase sobre os velhos pactos gregários. infestado de desejo de julgamento. tenho até receio de escrever isso. afinal...

contra isso escrevi num verso de tiráspola (Garupa, 2017) a reivindicação de que “o resto define um rosto um rosto é só uma linha e alguns buracos”.(p.43)

imaginando que mesmo aquele que está situado nas diversas pontas disso, sustentando o grupo, deve em algum momento se cansar. da sua encorpada rostidade.

mas talvez esteja projetando. como eu mesma me canso. me cansei. como isso –quando tenho que exercer- me esfola. ninguém vê. mais fácil crer o contrário daquele que não obedece aos padrões da tão temida ou protegida fragilidade.

talvez não estejamos preparados para uma vida sem horda... afinal...
ainda precisamos na mesma medida que o século XX precisou de totens?
de líderes?

e ao invés de mudar a regra só fazemos multiplicar (democratizar?) o número de nossos pequenos e bravos “líderes”?

como vamos nuançar e logo perceber- ou melhor- precisar das diferenças entre empoderamento e da fixação em lideranças? pode-se ler ídolo. celebridade. etc. essa pergunta nos exige voltar à questão da lisonja e ao dizer mais verdadeiro (Foucault).

acredito que as mulheres quando arregaçam as suas histórias fazem isso.
mas ainda assim receio.
sinto-nos frágeis – apesar de gigantes.
quero em parte apostar noutro tom. em tudo o que faço. e sou arrastada. à mesma agonia. exclusão. traição. desvalia.
volto. de novo. escrevo.
afino a ponta.
cravo um pouco mais.
e ainda assim.
essa voz cética. e rouca. cansada dos meus silêncios. no entanto me diz
– e isso vale?

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