do país da bunda até a bunda do país: reflexões iniciais em torno do cu como dispositivo político da atualidade



do país da bunda até a bunda do país:
reflexões iniciais em torno do cu como dispositivo político da atualidade
parte 1. 

[Alerta: gênero textual: ficção humorística. policial. e erótico-teórica.]

um país bunda sempre foi acolhido entre nós. nos nossos complexos de vira-lata. nesse sonho tele-novelístico que criou no epicentro “global” do Rio de Janeiro a sua primeira grande latrina. feita de uma identificação nociva com uma visão de mundo elitista, de artifícios e confetes. e, claro, da bunda da mulher brasileira como símbolo do que somos: subalternas. objetificadas. prostituídas mesmo quando não desejamos. enfim, já sabemos.

agora vivemos a exigência de reconhecer que o buraco dessa bunda, literalmente, é mais embaixo.

mas veja: o ponto primeiro a assinalar não me parece ser a fixação na fase anal. mesmo que. tampouco o ditado popular onde sempre se disse que “macho mesmo come até cu de viado”. mesmo que. tampouco essa relação entre o carnaval e as partes baixas do corpo. mesmo que. também insuficiente o entrelace entre a moral religiosa cristã e o desejo histórico de transgressão e perversão a ela atado. mesmo que. e nem que já sabemos todos que o público que frequenta o trabalho das travestis são majoritariamente ‘homens-machos-heterossexuais’. mesmo que. de fato hoje somos obrigadas a declarar que o cu (e a bunda que o porta) sempre foi um território exclusivamente masculino. repito - território. masculino. de uso. usufruto. usucapião. e obviamente de abusos infindáveis.

está na hora de começarmos a reivindicar o nosso cu. mas também o cu deles. fonte de gozo para todas nós que conseguimos driblar esse território. e entender que um corpo não está dado, senão que sempre a refazer. num mundo aonde ainda haveria encontro. e entre-corpos.

sofremos hoje a explosão desse território. masculino. do cu. em nossas caras. em posto central. nos grandes planaltos desse imenso país está ele ali. elevado a sua potencia máxima.

agora o cu por fim se torna, como em todo território de guerra, um dispositivo de cisão. de separação. de demarcação. de exclusão. e também de morte e assassinatos. o ditado “quem tem cu tem medo” nunca teve tanto efeito de verdade. literal. já abandonamos o mundo da metáfora. e voltamos, não ao rés do chão, cuja terra ainda nos dava alguma imaginação. voltamos ao buraco recôndito. escuro. por onde sai a merda e passa também o gozo. voltamos ao mundo sem janela. à altura da bunda. teto baixo. teto baixo.
pois bem, vamos lá, hora de arregaçar os nossos cus e botar pra quebrar, ou quem sabe ao menos encurvar, essas varas até aqui inquestionáveis.

como disse Foucault (o assunto aqui é sério): “A intervenção de um poder político sem limites nas relações quotidianas torna-se assim não apenas aceitável e familiar, mas também profundamente desejada, sem deixar de se transformar, por esse mesmo facto, no tema de um medo generalizado.(...). Como dizia o duque de Chaulieu, creio eu, nas Mémoires de deux jeunes mariés, ao cortar a cabeça ao rei, a Revolução francesa decapitou todos os pais de família.” (In: A vida dos homens infames).[grifo meu].


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