fulminato [8]

why the horse?*

d'après peça homônima de Maria Alice Vergueiro (e para ela)

uma atriz entra em cena todas as noites. todas as noites entrega ao público. aos atores. ao espaço e ao cosmos um corpo. meio seu e meio fora de si. esse corpo altera ali os limites aparentemente fixados. os seus. os meus. os da cena. os do cosmos. os do corpo.

limites postos para estabilizar as separações. distinções. mundos.

talvez suspender os limites momentaneamente. ou mesmo alterar o seu campo de ação. tornando-o mais largo ou mais restrito. faça desabar. por um instante. um mundo.

depois disso feito. algo nessas passagens alquebra-se.

Artaud dizia que era aí onde deixávamos sempre um pedaço da nossa carne. nada de visceral há nesse gesto. ele no entanto reivindica novas linhas. limites recolocados. desfeitos. entrecortados. pois notem que a carne que cai é também por onde espreita-se o osso.

pode ser seca essa passagem.

nessa brecha entre a carne e o osso vemos o tremor das linhas. as linhas são definidoras dos limites do corpo. a linha do braço. agregando-o [ou não] à mão. a linha dos dedos trêmulos. contam uma vida. as linhas de expressão no rosto. uma história sem fim. conturbada. a linha do globo ocular. convulsa. parada. a linha do joelho. a emoção guardada. a dor da linha da coluna. que já não mais ereta está.

*

o corpo sentado sobre a cadeira de rodas. e no entanto as linhas da voz. as linhas do sopro. as linhas rítmicas dos pés e dedos abertos. numa contorção permanente. redefinem o que vemos.

um corpo não é o que vemos. e o teatro sabe. 

as linhas refeitas outras. numa voz que levanta a perna. e retira com o peito cheio de ar. num sopro. num vento. aquele corpo daquela cadeira. o meu assento treme. os limites do meu corpo também. porque o teu era ali. acontecendo. imenso sobre rodas.

*

a atriz tem a doença de Parkinson. ela vai morrer. você também vai morrer. eu também vou morrer.

ela encena todas as noites a sua morte.

as linhas da cena. as linhas da vida. as da morte. as linhas do que jogamos para fora. dos corpos. voltam ali. morrerá ali? e eu? morrerei ali também? o que aconteceu?

*

essa é um peça acontecimento. já não se define nos contornos da cena. tampouco nos da vida. ainda não sabemos direito onde colocar essas coisas. ainda bem. os nomes acabam legislando o que resiste escapando.

como me disse a Maria Manoella: ‘Ana vá ver é um acontecimento’.

o acontecimento é um tremor. nada nele deixa-se representar. e no entanto. estamos ali assistindo a cena da sua morte. repetidas vezes. talvez repetir a morte. seja fazê-la fugir. diferi-la. dupla inflexão sobre a pulsão de morte. que só repete. e sobre o acontecimento que não se deixa agarrar. e escorre. representar os dois maiores irrepresentáveis. a morte. e o acontecimento. disso se trata. ali.

nesse caso: essa espécie de coincidência dispare entre a vida da artista. que repassa os seus autores e personagens. os seus textos que por tantas vezes. ao longo da sua vida. iam dizendo a morte. brecht. beckett. hilda hist... incansáveis cavaleiros apocalípticos. esse anúncio. essa aparição. essa antecipação. do que viveu a atriz. e da morte porvir de seu corpo. esse tempo colapsado. impossível. ali não há passado. nem futuro. mas esse presente. ele mesmo. o imenso impalpável. que ela nos abre. generosa. grande. fazendo-nos tocar o invivível do que vivemos.

*

será o destino. a morte? why the horse?

será porque vamos morrer. será porque ela morreu. ele morrerá também. será porque a morte estava ali. quando nasci. será porque você foi embora. e a noite. será talvez uma ideia metafísica. a da vida. será porque cremos tudo conhecer. e você. que não se curva. será a curva da vida. o cabo dobrado. será a falta de esperança. será tão somente ele. o medo. o sem nome. será que morrer vale a pena. viver sabe. será que morrer. rima. será um problema de rima. entre viver e. será um cavalo na estrada. será um peito sem leite. será uma orfandade. será a brevidade de tudo. será a morte. aquela senhora que chega para o jantar. será que sem comida. sem mesa. será como a menina da esquina. será a prostituta sem corpo. será o lustre ensaboado. será o banho sem água. será o turvo já visto. será pálida a morte. será que morrer. vale. será morrer escrever. também escrever pra morrer. será escrever morrer. um pouco de cada. será o um. será que com os mortos vivi. será que não te ouvir. será a morte esse calar. e dizer. e dizer. será que dizer faz passar. será que foge morrer. será que morrer faz devir. será que porvir e fugir. e morrer. será que morrer faz nascer?

why the horse my dear. why the life is going trough the real true. why the horse is coming. why die looks like. why the horse die. my dear. don’t cry. don’t try. don’t do it. let me die. the horse I mean. let me go with him. let my death. the horse. I mean. let me die with him.

Ana Kiffer

*why the horse: direção maria alice vergueiro. dramaturgia fabio furtado. com maria alice vergueiro, luciano chirolli, carolina splendore, alexandre magno, rafael faustino e robson catalunha.



Comentários

  1. Lindo o poema. A reflexão. A escrito. Me tocou forte estas palavras/reflexão/pensamento/sentimento rs
    "talvez suspender os limites momentaneamente. ou mesmo alterar o seu campo de ação. tornando-o mais largo ou mais restrito. faça desabar. por um instante. um mundo."

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